Analisamos os dois primeiros filmes da carreira do cineasta Michael Mann
Por André Fellipe
“I have run out of time. I have lost it all. So I can’t work fast enough to catch up. I can’t run fast enough to catch up. And the only thing that catches me up is doing my magic act.” – Frank
Hoje começamos no Previamente uma série de textos que analisarão o trabalho de Michael Mann ao longo de sua carreira. Um dos diretores americanos mais interessantes das últimas décadas, Mann possui em seu catálogo uma variedade de filmes fantásticos e outras bagunças gigantes. Durante os próximos meses, tentarei passar periodicamente aqui as razões que justificam isso. Para começar, os dois primeiros trabalhos dele no cinema: Profissão: Ladrão (Thief) e A Fortaleza Infernal (The Keep).
A primeira cena de Profissão: Ladrão é uma bela forma de começar uma carreira no cinema. Lá podem ser encontrados inúmeros detalhes que são passados ao público sem muita necessidade de exposição. Nesse início, presenciamos três pessoas envolvidas na escuridão da noite realizando o roubo de diamantes. Com uma naturalidade ímpar, a ação é construída e alcança o seu objetivo sem dificuldades. Esse conforto é um reflexo da personalidade de Frank (James Caan). Aquele é o seu habitat. Ao longo do filme, é perceptível através da linguagem corporal do ator como em ocasiões comuns ele apresenta uma expressão fechada e antissocial que contraria o seu comportamento quando o mesmo está “trabalhando”.
As garras de Mann são imediatamente mostradas. As sombras e os tons azuis constantemente presentes constroem uma Chicago imprevisível e misteriosa, assemelhando-se ao protagonista do filme, transformando o cenário um elemento fundamental para a narrativa, como evidenciado pelo último ato explosivo e o fato do diretor enquadrar com frequência a cidade no fundo de determinadas cenas, destacando-se principalmente no diálogo entre Frank e Jessie (Tuesday Weld) em um restaurante (mais sobre essa cena em seguida).
Frank é um especialista em roubos de joias e ex-detento que tem uma vida bem estabelecida com negócios como uma concessionária e um bar, mantendo sua relação com as pessoas mais importantes do crime organizado de Chicago a mínima possível, mesmo que isso signifique uma margem de lucro menor para os seus serviços. Ao ter um problema com a venda dos diamantes da cena inicial, ele decide confrontar os responsáveis por não receber o pagamento e envolve-se com Leo (Robert Prosky), que se mostra como um admirador do trabalho de Frank e o convence a trabalhar para ele por um breve período de tempo em roubos mais valiosos, condição do protagonista por não querer correr tantos riscos por pessoas que não confia.
O personagem de James Cann é o fio condutor da narrativa. Todos os outros personagens giram ao redor do seu universo e o filme termina sendo um estudo fascinante de sua personalidade em diversas situações. Cada movimento dele é totalmente dedicado a pôr em prática um plano, uma forma de manter sua mente ocupada. Sem um mínimo de planejamento para seguir, Frank não tem muito que fazer. Na melhor cena do longa, um diálogo onde o próprio mostra uma colagem com a sua vida ideal para Jessie em busca de convencê-la a se envolver com ele, vemos a sua dependência de seguir seu plano.
Torna-se brutal, então, presenciar o declínio do personagem logo após ele alcançar o estado mais próximo da colagem que ele chegou em sua vida. É um raro momento de paz do personagem, na praia com sua família, seu filho, a esposa, seu parceiro (James Belushi, que atualmente atende mais como “Jim” Belushi). Servindo como um personagem na cena e em diversos outros momentos, a trilha sonora consegue ser atmosférica e explosiva com os sintetizadores do grupo Tangerine Dream, complementando a personalidade do protagonista.
James Cann é enfático ao compor Frank, distinguindo com sutilezas a naturalidade dele nos roubos e explodindo em cenários que se distanciam disso. Ele impede a todo o custo que as situações saiam do seu controle. Nota-se como Frank passa a ser agressivo quando as pessoas impedem os seus objetivos, como na sua explosão ao ser impedido de adotar uma criança por ter sido presidiário. Todos ao seu redor terminam sendo involuntariamente uma peça de seu quebra-cabeça. Ao ser impedido de adotar uma criança, ele adiciona a última clausula no seu contrato com o diabo para consegui-la e completar sua colagem.
O elemento que chega a faltar mesmo quando ele está próximo de atingir o seu objetivo é Okla (Willie Nelson). Servindo como a figura paterna de Frank, o personagem consegue uma proeza impressionante ao conseguir se destacar em seus breves momentos de luta para sair da prisão antes que seus problemas de saúde o levem a falência.
Mesmo com uma falta de confiança do filme em ser discreto ao tratar com diálogos explícitos os caminhos inversos representados por um amigo cada vez mais distante na vida do protagonista ao mesmo tempo em que seu bebê chega (a história do velho indo embora e a renovação através do novo), Profissão: Ladrão mantém ao longo de toda a história uma sensação tensa que explode no último ato. Após um conflito de egos, Frank e Leo entram em rota de colisão e Michael Mann é capaz de transmitir isso com técnicas desconfortantes, com um assassinato chave onde o foco da câmera é o corpo arremessado e Robert Prosky sendo enquadrado de cabeça para baixo quando revela-se como um bandido muito mais violento do que a imagem de patriarca de uma família do crime que lhe era atribuída inicialmente.
E, considerando que filmes com a temática do crime normalmente seguem essa direção, somos convidados a um tiroteio que se sobressai graças à expressividade do protagonista. Ao perceber que com Leo em sua vida aquela montagem não se tornará realidade, Frank vê todo o seu trabalho desconstruído. Já que estamos falando de um homem que acredita que para sobreviver no mundo dele deve-se encontrar o ponto onde nada significa nada e que viver ou morrer não interessa (uma de suas icônicas frases na linda confissão de Frank no restaurante), é possível ter uma imagem do que acontece na última cena, que utiliza o mínimo de palavras e deixa as ações rolarem soltas para encerrar um neo noir brilhante de Michael Mann e companhia.
Em seu segundo filme, o diretor abandona o suspense psicológico e entra no mundo do terror com A Fortaleza Infernal, largando o mundo de crime e estudo de pessoas para fazer… alguma coisa?
É difícil ter outra sensação que não seja essa ao ver os créditos subirem. A falta de uma temática principal deixa o filme flertando com pequenos objetivos e em nenhum momento tirando sentido de algum deles. É uma observação de seres humanos diante de uma adversidade sobrenatural? É um comentário social relacionado ao nazismo? É uma questão de hipocrisia por parte do protagonista ao trocar um mal terrível (um demônio) para se livrar de outro (nazismo) independentemente do custo dessa decisão? É uma parte da vingança do Magneto, que voltou no tempo sem seus poderes para enfrentar os nazistas? De uma forma ou outra, A Fortaleza Infernal tem esses elementos em sua narrativa (com exceção do último caso, d’uh), falhando em seguir um deles especificamente.
Durante a Segunda Guerra Mundial, os nazistas chegam a uma pequena vila na Romênia e ocupam a fortaleza lá existente, mesmo avisados dos perigos ali encontrados. A partir disso, inúmeros soldados morrem no local, obrigando o capitão Klaus Woermann (Jürgen Prochnow) a chamar reforços liderados por Eric Kaempffer (Gabriel Byrne), que lida com o problema de forma mais agressiva, matando os habitantes da vila por acreditar no envolvimento deles. Para tentar resolver o problema, o padre do local indica que a única pessoa capaz de ajudar é Dr. Theodore Cuza (Ian McKellen).
Ao nos depararmos com os personagens, é possível perceber como qualquer mensagem ou sentimento que o filme tenta passar para o espectador não tem êxito. Com exceção do doutor e o capitão, todos os outros personagens não possuem tridimensionalidade suficiente para se aproximarem do público (e olhe que os dois citados antes não são exatamente excepcionais). Dificilmente conseguiria escrever sobre a personalidade deles em mais de uma linha. A preguiça do roteiro em diferenciar as pessoas além de seus estereótipos é auxiliada também por uma montagem muito ineficiente ao retratar a passagem do tempo. Um personagem é apresentado em uma parte do mundo para, em seguida, estar na vila, atrapalhando completamente o ritmo da narrativa, que em nenhum momento parece estar convergindo para uma ideia homogênea. Aparentemente, a ideia inicial era de um filme com cerca de três horas de duração que terminou sendo recortado para noventa minutos sem sentido.
A trilha sonora (do mesmo Tangerine Dream do filme anterior) mostra-se altamente inadequada no contexto do filme, destoando completamente o sentido de certas cenas, como no caso das primeiras vítimas dentro da fortaleza, assassinadas ao som de sintetizadores vibrantes, o que destrói qualquer nível de tensão existente.
O fato de a história ser mal elaborada termina trazendo um conjunto de cenas que soam aleatórias. Em nenhum momento, por exemplo, conhecemos algum traço da personalidade de Glaeken Trismegestus (Scott Glenn), que se mostra como o herói em busca de derrotar o demônio (por razões que eu não consigo explicar e você dificilmente encontrará no filme). Portanto, fica difícil digerir a cena de sexo dele com a filha do personagem de McKellen, que chega a parecer de um filme completamente diferente.
Como supracitado, os dois personagens que recebem o mínimo de atenção terminam também como as únicas vias existentes para que o filme tente algo, considerando que o demônio que tem um figurino que remete mais a um androide do que a qualquer outra coisa não consegue assustar. Theodore Cuza é um judeu muito próximo de um campo de concentração que enfrenta a decisão de colaborar com o ser da fortaleza (que não pode sair dela nas suas condições atuais) para matar os nazistas. Com o personagem apoiado mais em uma atuação convincente de Ian McKellen do que na lógica do roteiro, o doutor é brutalmente mal aproveitado, mal arranhando a superfície do que ele poderia trazer para a narrativa.
Fracassando em assustar e em apresentar personagens atraentes, A Fortaleza Infernal é exatamente o oposto do primeiro filme de Michael Mann, o que indica que sua capacidade em escrever e dirigir (o que ele faz nos dois filmes em questão) é muito mais forte no mundo do crime do que no do terror.
Na próxima edição do Review Retrô: Caçador de Assassinos e O Último dos Moicanos.
The Keep é um filme muito mais poderoso que você deixa a entender em sua crítica e tem tudo a ver com expectativa e as ferramentas de reflexão usadas para analisar o filme. Não que sua leitura seja uma leitura impossivel, aliais é simplesmente comum. Gostaria portanto de apresentadá-la em um contexto diferente. Minhas perguntas para tentar cavar uma observação diferente seriam, mas não exclusivamente: esse ser que é a narrativa precisa de ritmo para funcionar? Ela precisa de motivações aparentes para ser considera bem sucedida?
Um paralelo interessante com o The Keep é com o Tommy do Ken Russell. Analisá-los dentro do contexto Epicurista, em especial Lucrécio, se torna um filme da falha necessária quando se vai para e retorna ou se comunica com o além mundo. Sugiro a leitura de De Rerun Naura do Lucrecio. Acredito que há apenas uma tradução em português na coleção pensadores.
Aliais, tamvém existem uma grande identificação do filme com a obra de Lovecraft, justamente pela ineadequação das realidades e isso que trás o horror (e não terror). Mann conseguiu talvez ser o único diretor a criar um clima Lovecraftiano.
Sobre o seu contexto diferente: ritmo e sentido são necessários para que um filme consiga atingir um objetivo. Qualquer que seja a reação que Mann tenta trazer para o público em The Keep termina morrendo por água a baixo porque os acontecimentos da narrativa são basicamente jogados na tela sem nenhum cuidado. O fato de personagens serem levados de um lugar ao outro com cortes mal feitos quebra a possibilidade de uma construção orgânica. Não existe um acúmulo de tensão e ansiedade ao longo do filme para que uma reação de pavor ou reflexão (por melhor que seja a punchline, a forma de contar a piada é mais importante). O único conflito que tenta ser levemente tridimensional é o maniqueísmo dos nazistas (e maniqueísmo é um dos traços de um roteiro pobre). Como disse no texto, os personagens fracos associados com outros fatores impede que uma atmosfera fictícia para discutir/provocar algo tão humano quanto o horror esteja presente.
“[…] um filme da falha necessária quando se vai para e retorna ou se comunica com o além mundo.”
Esse é o conflito do protagonista e o que The Keep faz com isso não é nada demais. É artificial e repentino demais para arquitetar uma discussão ao redor disso.
A narrativa precisa de um intuito e os elementos que a complementam precisam convergir para que ele seja alcançado. The Keep é frágil no primeiro quesito e ainda pior no segundo.
PS: Não acredito que expectativa me afete ao assistir qualquer filme. Sempre evito subestimar ou superestimar qualquer obra antes de vê-la porque isso não adiciona nada para a experiência. O fato do primeiro filme de Mann ser fantástico não me fez acreditar que o segundo também seria de forma automática. No caso das “ferramentas de reflexão usadas para analisar o filme” serem parte de uma abordagem comum, o que escrevi foram argumentos para subsidiar o que achei do filme, envolvendo diversos mecanismos. Não acho que isso mereça desmerecimento.