Watchmen, Succession e Better Call Saul estão na lista.
O Previamente, a partir de um júri com 21 pessoas entre profissionais da área, jornalistas, críticos, estudantes e aficionados por séries, elegeu as melhores séries (drama) da temporada 2019/2020. A seleção foi realizada utilizando os mesmos critérios do Emmy Awards: entram as obras que foram exibidas em sua totalidade ou mais de 50% de sua temporada entre 1º de junho de 2019 até 31 de maio de 2020.
Confira abaixo a lista completa abaixo.
MELHORES SÉRIES (DRAMA)
Unbelievable (Netflix)
Essa série limitada, com oito episódios, foi uma das maiores e melhores surpresas no catálogo da Netflix nos últimos tempos. Abordando um assunto extremamente difícil de forma cuidadosa e complexa, Unbelievable se destaca por um casting perfeito, atuações incríveis e profundamente tocantes das três mulheres que encabeçam a sua história, e uma narrativa muito bem amarrada. Baseado numa história real da jovem Marie Adler (Kaitlyn Dever) que após ser vítima de estupro e dar queixa do ocorrido para a polícia é completamente desacreditada, levada a retratar seu testemunho e tem sua vida arruinada pelos investigadores, sendo inclusive processada por ter fornecido um testemunho falso, a série começa focando na experiência traumática de Marie com a polícia. Vemos a jovem tendo que reviver à exaustão seu ataque por profissionais de diversas áreas, completamente destreinados. Conseguimos sentir a dor de Marie ao ser julgada pela forma como reage e ao ser acusada de mentir sobre o ataque por todos que lhe cercam.
Em paralelo, vemos duas policiais, anos depois, em um outro estado estadunidense, tendo que lidar com casos de estupro na região perpetrados pelo mesmo homem que atacara Marie anos antes, sua primeira vítima. Essa dupla estranha, formada pela determinada detetive Karen Duvall (Merritt Wever), uma mãe de família super zelosa, religiosa e que leva seu trabalho muito a sério, e a desbocada detetive Grace Rasmussen (Toni Collette), uma mulher extremamente independente, sem papas na língua e um afinco tão grande quando a outra pelo trabalho que realiza, é implacável em seu propósito: dar fim ao reinado de horror desse homem sem rosto. A série se destaca pelo cuidado em retratar a jornada de Marie, uma vítima repetidamente vitimizada por um sistema criminal que, ainda, trata o estupro com pouco ou nenhum cuidado, e utilizar seu outro núcleo narrativo para demonstrar como uma investigação do tipo merece ser feita, com cuidado pelas vítimas e afinco máximo em resolver tais crimes. A minissérie nunca cai no espetáculo do choque. Suas escolhas são deliberadas, tendem a utilizar os casos sem uma exploração visual gratuitamente excessiva e focam nessas mulheres em sua falibilidade, personagens complexas, nem sempre agradáveis, mas que sobrevivem e tentam mudar um sistema falho e injusto. — Mariana Ramos
Normal People (BBC Three/Hulu)
Apesar de saber do hype que cercava o livro homônimo que deu origem à série, tenho que dizer que não estava esperando muito, ou nada, dela. Que engano. Agora, tendo assistido Normal People (algumas vezes), a singularidade e qualidade da série ficaram muito claras para mim. Apesar de se encaixar na categoria de um “romance adolescente/jovem”, a série trata o tema com um cuidado e lirismo imensos, mesmo em seus pequenos detalhes. Suas câmeras bem próximas, planos longos que nos permitem compartilhar o processo mental dos personagens e suas dores e gestos mais sutis, o foco extremamente suave no rosto dos dois protagonistas, a trilha sonora impecável, tudo é perfeitamente colocado, com muito cuidado, sem grandes estardalhaços.
A química entre os dois atores no centro da trama Daisy Edgar-Jones, no papel de Marianne, e Paul Mescal, como Connell, é inegável, assim como o incrível talento desses jovens atores. Normal People é uma história visceral, se muito simples. Essa narrativa de amor tão real, em seus desencontros dolorosos e problemas de comunicação que parecem surgir do nada, mas que muito falam sobre nossa geração, nossos medos e ansiedades quanto à entrega romântica, faz refletir sobre os traumas que carregamos e como eles nos perseguem, sem que nem mesmo saibamos. A jornada dessa relação é muitas vezes difícil, machucando os personagens e o próprio espectador que logo forma laços de afeto e identificação com os protagonistas. É um caminho intenso, perfeitamente balanceado nos 12 episódios que tem o tamanho ideal: 30 minutos, para um drama, algo ainda muito pouco comum. Para mim, a série foi um presente inesperado e extremamente bem-vindo, e se destaca completamente dentro do cenário televisivo atual. — Mariana Ramos
Mrs. America (FX)
Apesar do enfoque e do buzz criado por Cate Blanchett na sua divulgação, Mrs. America é muito mais do que apenas uma minissérie construída para colocar um Emmy na prateleira de uma atriz consagrada pelos papeis no cinema. É uma produção criada e executada por mulheres, sobre mulheres que arregaçaram as mangas e se envolveram na política para defender os ideais em que acreditavam. Assim a narrativa acompanha oito anos na vida de algumas das mulheres que lideraram o movimento para que o ERA (Equal Rights Amendment, ou Emenda de Direitos Iguais) fosse aprovado pelo congresso norte-americano e do movimento de mulheres conservadoras que surgiu em resposta à elas. De um lado temos Margo Martindale, Rose Byrne (como um dos rostos mais icônicos da segunda onda feminista, Gloria Steinem), Uzo Aduba, Elizabeth Banks, Ari Graynor e Tracey Ullman. No outro lado, Cate Blanchett encarna Phyllis Schlafly, Sarah Paulson (como uma personagem criada especificamente para a série), Melanie Lynskey e Jeanne Tripplehorn, que tem um papel menor como a cunhada solteirona de Phyllis, mas não menos importante, pois é a partir dela que muitos dos discursos conversadores de Phyllis sobre o papel da mulher são colocados em contradição.
Em cada episódio, Dahvi Waller, roteirista e criadora da série, coloca em foco uma destas personagens, nos dando a oportunidade de adentrar no mundo íntimo de cada uma e explorando uma gama ampla de questões relacionadas e interseccionadas ao feminismo. Para além do retrato histórico, Mrs. America faz um comentário sobre o debate político atual, mostrando que muitas das questões debatidas pelas personagens nos anos 70 ainda são um campo em disputa, e que os métodos e discursos mudaram muito pouco. Ao final da série não há catarse, afinal a história é a história, e seus personagens não necessariamente enxergam onde erraram pelo caminho ou fazem algum tipo de declaração que parece acabar com todas as injustiças. No entanto, não podemos dizer que a série nos entrega um final niilista. A reflexão gerada nos acompanha por tempos e nos motiva a continuar lutando e manter a porta aberta para que a luta por igualdade continue pelas próximas gerações, até que ela não seja mais necessária. — Rafael Bürger
The Good Fight (CBS All Access) — Quarta Temporada
O grande defeito da quarta temporada de The Good Fight é que ela acaba cedo demais. Programada para ter 10 episódios, ela foi reduzida a sete por conta da pandemia do coronavírus que encerrou as filmagens do quarto ano mais cedo. É notável que algumas tramas poderiam ir mais longe do que foram ao final dos episódios exibidos — Cush Jumbo e Delroy Lindo deveriam sair da série, mas não tiveram suas despedidas efetivadas por conta da redução. Dito isso, é quase um milagre que a temporada consiga ser concluída de maneira satisfatória, ainda mais dadas as circunstâncias. Iniciando com um episódio de realidade alternativa, ele dá o tom da temporada, que segue com o tema: os ricos e poderosos são o câncer da sociedade. E isso é tratado aqui a partir de um mistério que carrega a temporada: Memo 618. Isto faz com que The Good Fight se torne um thriller conspiratório excitante e surpreendente.
A temporada concilia os diálogos espirituosos e a ironia necessária para lidar com o caos do mundo com os grandes temas, que incluem discutir o que a América deve para os afro-americanos por conta de anos de escravidão (as reparações), entra em uma discussão espinhosa, mas necessária e certeira sobre transsexuais (J.K. Rowling não deve ter curtido o episódio, no entanto), a hipocrisia que há no lado progressista da política, além do fato de trazer o passe que os ricos possuem, já que sempre encontram uma maneira de não lidar com as consequências de seus crimes. Surpreendentemente, os Kings mantêm a capacidade de antecipar as discussões do momento em seus episódios. Na semana do seu não-intencional-finale que gira em torno dos crimes e o mistério acerca da morte de Jeffrey Epistein, a Netflix lançou uma minissérie documental sobre ele, vazaram informações de que ele teria sido morto (e não cometido suicídio), e recentemente uma ex-namorada dele foi presa por ajudá-lo na exploração de menores. Mesmo o papo do Memo 618, algo que ajudaria os poderosos a não responderem por seus maus-feitos, é extremamente relevante. Prova disso é o fato de, em paralelo à série, o Departamento de Justiça dos EUA ter arquivado o processo criminal contra Michael Flynn, ex-assessor de Trump, mesmo após ele ter se declarado culpado por ter mentido ao FBI.
Definitivamente, os Kings têm um sexto sentido de que não sabemos, ou apenas prestam atenção no que acontece no mundo. Não há dúvidas de que The Good Fight é a série mais relevante do Governo Trump e ainda tenho esperança de que mais pessoas consigam enxergar isso. A cada ano que passa, os Kings se desafiam e seu elenco, e continuam surpreendendo e se superando. Aliás, seu finale improvisado tem uma das cenas mais chocantes e surtadas do ano. Quem tem essa coragem, honestamente? Enquanto o público em geral e as premiações não reconhecem a genialidade de The Good Fight, felizmente fazemos o nosso trabalho de exaltar mais uma temporada irretocável da série. — Rodrigo Ramos
My Brilliant Friend (HBO/RAI) — Segunda Temporada
Não há série mais ricamente observada no ar atualmente do que My Brilliant Friend. Partindo de um texto que já é enormemente revelador sobre a experiência humana comum e sobre o ponto de vista único de seus personagens (e o que ele nos tem para ensinar), a produção da HBO/RAI expande o impacto da obra de Elena Ferrante com imagens detalhadamente texturizadas, sensivelmente escolhidas, minuciosamente pensadas para nos ajudar a mergulhar nas sensações e, portanto, entender as escolhas de suas protagonistas. É uma série que, atenta à forma como Lila e Lenù veem o mundo a sua volta, reconhece o poder do audiovisual de distorcer a realidade para representar justamente essas visões.
Na segunda temporada, batizada de The Story of a New Name a exemplo do segundo livro da tetralogia napolitana de Ferrante, essas distorções são mais intensas, e se sucedem mais rápido do que nunca. My Brilliant Friend vê o confronto entre as mudanças da vida adulta e as emoções à flor da pele e a incerteza identitária do final da adolescência, e transforma essa colisão em uma peça de arte cheia de imagens inesquecíveis, vibrantemente social, mas também fabulosamente pessoal. Ela emociona não por ser tecnicamente impecável (embora seja), mas por entender a que tipo de história, e a que tipo de olhar, essa excelência merece servir. — Caio Coletti
Better Call Saul (AMC) — Quinta Temporada
Finalmente recebemos o Saul Goodman de Breaking Bad, ao menos no nome, após o gancho que havia encerrado a temporada passada. Este quinto ano demorou mais que o normal para retornar – foi mais de um ano de espera –, mas trouxe consigo um questionamento bastante válido: o spin-off já pode ser considerado melhor que a obra original? A comparação é polêmica, e prefiro deixar cada um tirar suas próprias conclusões. Contudo, é verdade que Better Call Saul têm suas peculiaridades que a tornam uma obra completamente independente e autossuficiente, capaz até de “plantar” memórias sobre personagens que sequer existiram em Breaking Bad, mas que pareciam estar conosco desde sempre, sinais do quão bem amarradas estão ambas as narrativas. Mesmo sendo refém de um futuro já conhecido, a série consegue seguir construindo sua história utilizando das melhores ferramentas que já conhecíamos, mas aperfeiçoadas. O que nos entrega uma narrativa que abusa, de forma positiva, da estética para brincar com seu texto e que, independentemente do que já sabemos que acontecerá, se mostra capaz de estabelecer momentos de tensão completamente funcionais e envolventes, e totalmente hábeis de nos surpreender. Nesta penúltima temporada, as tramas paralelas passaram a se aproximar, e até se conectar, e denotam, sem perder o humor característico da série, o quanto importam os personagens centrais criados para ela. Nem sei quanto tempo ainda falta para a despedida, mas já bate a tristeza só de saber que ela se aproxima. — Renan Santos
Succession (HBO) — Segunda Temporada
Se o mote da desumanização das relações sociais (notadamente as familiares) do topo da elite social se consolida como crítica na primeira temporada de Succession, a segunda temporada da série da HBO criada por Jesse Armstrong (principal roteirista da cínica The Thick of It) afirma-se no gosto da crítica e do público após episódios inventivos, punchlines criativas e o aprofundamento das relações totalmente disfuncionais da família Roy.
Lidando com a eterna possibilidade de sucessão do líder empresarial e pai de família, Logan Roy, na segunda temporada vemos alianças, crises e novas abordagens dos filhos para tentarem serem sucessores do pai — ou minimamente relevantes para ele. Através de diálogos depreciativos que invocam a desumanização dos demais como forma de dar luz pelo tom de cômico aos problemas e defeitos de seus pares, o drama invoca outras tropes consolidadas na comédia para desenvolver suas histórias como episódios temáticos de viagens, jantares ofensivos e bottle episodes no melhor estilo Seinfeld ou Community. Ao continuar abordando situações que se tornaram comuns nas principais famílias donas dos meios de comunicação mundo afora (CPIs, discussões públicas entre herdeiros e apoio à pautas políticas polêmicas), criticando a desumanização das elites no capitalismo e representando realisticamente disputas familiares internas, Succession garante-se como uma das séries mais relevantes dos últimos anos. — Cristian Dutra
Watchmen (HBO)
Cercada de incertezas sobre se era uma boa ideia fazer uma sequência de uma das maiores HQs de todos os tempos, Watchmen veio com o pedigree HBO e um elenco de dar inveja, com vencedores do Oscar, Emmy e Globo de Ouro atados ao projeto. Após seu lançamento, no entanto, não restou dúvidas de que a ideia era certeira. Com o espírito do trabalho de Alan Moore intacto, a minissérie não só presta homenagem à graphic novel, como expande seus horizontes, inclusive superando o material original ao conseguir fazer um comentário político-social acurado e necessário aos tempos de hoje, levando em conta também algo que Moore deixara passar batido: o peso do racismo na construção da América.
Se há alguém em Hollywood capaz de pegar uma obra original aclamada, adaptá-la para as telas e alavancá-la a um nível superior é Damon Lindelof. The Leftovers, co-criada por ele, tem elementos importantes alterados na primeira temporada em relação ao livro em que se baseia, e é definitivamente nas temporadas sucessoras que a série alcança voo, a ponto de se tornar uma das produções mais memoráveis da década passada.
Em Watchmen, Lindelof (com a ajuda de uma sala de roteiro diversa) serve de espelho da nossa sociedade e tenta fazer um resgate histórico para nos lembrar como costumeiramente repetimos o passado, o que infelizmente significa que aprendemos pouco com a história, quiçá nem mesmo a conhecemos de fato. Sem nem saber o que viria pela frente em 2020, Watchmen aborda como os excessos policiais cometidos até hoje são reflexo de problemas originados pelo racismo estrutural que fundamentaram o país (ou o continente, pode escolher, afinal no Brasil não é diferente). Subversivo em várias maneiras, Watchmen não se contenta com respostas fáceis, mostrando que traumas sobrevivem a gerações, que o ódio contra as pessoas de cor está presente em todas as camadas da sociedade (especialmente nos setores do poder), que toda ação traz consequências. A série ainda consegue fazer uma espécie de reticom da HQ original para elevar o conteúdo próprio e dos quadrinhos, explora o conceito de tempo e espaço de forma mais objetiva e eficiente do que muitas séries e filmes recentes, e conta com personagens (inéditos ou não) complexos e com propósito.
Watchmen é excelência televisiva. É daquelas experiências únicas que não teremos outra parecida no futuro. É incômoda, é audaciosa, é brilhante. — Rodrigo Ramos
Menções honrosas: Undone (Amazon Prime Video), Mindhunter (Netflix), Euphoria (HBO), The Plot Against America (HBO), The Crown (Netflix).
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Fizeram parte do júri
Angelo Bruno, estudante de Letras — Licenciatura em Português.
Breno Costa, roteirista.
Caio Coletti, jornalista e colaborador do site UOL.
Dana Rodrigues, editora do site Diário de Seriador.
Diego Quaglia, cineasta, roteirista e crítico de cinema e audiovisual.
Diogo Pacheco, colaborador do Série Maníacos.
Fillipe Queiroz, estudante de Psicologia, aficionado em séries.
Geovana Rodrigues, sommelier de séries.
Gustavo Marques, produtor de conteúdo e entusiasta de televisão.
Juliano Cavalcante, bacharel em Economia, escreve sobre seriados na internet desde 2005.
Leonardo Barreto, editor do Quarta Parede Pop.
Luis Carlos, administrador do grupo Crônicas de Séries e da página Cultura em Frames.
Mariana Ramos, roteirista, mestre em Cinema e Audiovisual, host do podcast Maratonistas.
Mikael Melo, jornalista, produtor de Jornalismo na NDTV Record.
Rafael Bürger, bacharel em Imagem e Som pela UFSCar e cineclubista.
Rafael Mattos, estudante de Jornalismo, administrador do grupo Crônicas de Séries.
Rafaela Fagundes, sommelier de séries.
Régis Regi, bacharel em Cinema, roteirista, host do podcast Maratonistas.
Renan Santos, formado em Cinema, crítico e newsposter no site Cine Eterno.
Rodrigo Ramos, jornalista, editor do site Previamente, repórter da Huna Comunicação Para o Bem.
Valeska Uchôa, cientista da computação, ex-colaboradora do Série Maníacos e do falecido Lizt Blog.
Textos por Caio Coletti, Cristian Dutra, Mariana Ramos, Rafael Bürger, Renan Santos & Rodrigo Ramos
Produção, edição e redação final por Rodrigo Ramos