Misógino, o longa é um retrocesso para as mulheres
Sucesso de rentabilidade não é e nunca foi sinônimo de qualidade. Cinquenta Tons de Cinza é um exemplo disso. Quarta maior abertura da história do cinema brasileiro e com uma bilheteria internacional que ultrapassa os US$ 520 milhões, o longa-metragem é baseado em uma série de livros que, por si, iniciou como uma fanfic de Crepúsculo. A partir disso, não dá pra se esperar muito. Enquanto a linguagem do livro de E.L. James é um tipo de sexy sendo vulgar, com linguagem pobre e pouco inspirada, o filme tinha a oportunidade de mudar algumas coisas da história e deixá-la mais light, e foi mesmo o que aconteceu na telona. A questão é que basicamente tudo o que Cinquenta Tons de Cinza representa, desde suas mensagens, sua narrativa e personagens, é equivocado, ultrapassado e descartável.
A história é aquela que você já sabe e é um paralelo com as histórias de Stephanie Meyer. Anastasia (Dakota Johnson) vai fazer um favor para a colega de apartamento dela e vai entrevistar o milionário Christian Grey (Jamie Dornan). Ele é o cara misterioso e ela é mocinha sem jeito. Em uma entrevista sem graça (eu, como jornalista, me senti mal nessa cena com tanta pergunta mongol), por algum motivo que foge do meu conhecimento, Grey se sente atraído por ela. Enquanto isso, Ana, totalmente sem personalidade e expressão além da mordida constante em seu lábio inferior a cada cena, começa a cair no charme (ainda estou procurando isso também) do rapaz.
Ao término da entrevista, ela sai do prédio e então cai a chuva. Clássico de comédias românticas. A mocinha está preparada para praticar o coito! Por sinal, Ana tem 21 anos e é virgem. Isso é uma informação relevante pro que vem pela frente.
A partir daí, Ana não tira Grey da cabeça e ele, por sua vez, começa a persegui-la de todas as maneiras. Manda vários presentes (de notebook até um carro), vai atrás dela em bares (faz vexame), em reuniões de família. Depois disso, impõe que ela coma somente o que ele recomenda, não beba, faça exercícios, informe sobre tudo o que ela faz, e por aí vai. Basicamente, Anastasia se firma como refém de Grey. Ela mal o conhece e, ainda assim, ela se sujeita a fazer tudo o que ele quer. Quando ela se depara com as excentricidades sexuais de Christian, a sua cara permanece estática. O sadomasoquismo, para ela, virgem de 21 anos, é encarado como algo normal. Ana conhece-o há poucas semanas e, ainda assim, tudo o que ele lhe impõe ela enfrenta como um fato aceitável.
O principal problema de Cinquenta Tons de Cinza é que ele está atrasado em torno de uns 100 anos, pelo menos. Não que em algum momento na História da humanidade as mulheres mereceram ser sodomizadas, mas ainda nos dias atuais as pessoas do gênero feminino buscam seus direitos, há tão pouco conquistados e ainda longe do ideal. Então chega uma história que em duas horas joga fora, em termos de valores, tudo o que as mulheres conquistaram ao longo das últimas décadas. Isso porque Anastasia é uma personagem vazia, isenta de personalidade, e que só consegue enxergar vida ao lado do “príncipe encantado”. Em busca do homem que venha lhe salvar, até as princesas da Disney aguardavam no século passado. No entanto, apesar de esperar pelo surgimento deles, elas possuíam personalidade. Branca de Neve, Ariel (A Pequena Sereia), Cinderela, Mulan e Pocahontas, só para dar uns exemplos. Tiveram seu final feliz com um homem ao lado? Sim, até porque eram os valores estipulados até pouco tempo eram esses, as mulheres tinham que casar. Isso não significa, entretanto, que faltasse tridimensionalidade à elas.
Anastasia é uma personagem lamentável para os dias atuais. Ela é tudo o que grande parte das mulheres de hoje repudiam, em absolutamente todos os sentidos, tanto na cama como em outros setores da vida dela. É uma imagem que coloca a figura feminina como passiva, obediente, submissa. Personagens mais fortes no cinema, na TV e na literatura já existem. Tome como exemplo as detentas de Orange is the New Black, Alicia Florrick em The Good Wife, Katniss na franquia Jogos Vorazes, Peggy Carter tanto nos filmes da Marvel quanto no seriado Agent Carter. A protagonista de Cinquenta Tons de Cinza é o oposto do que as feministas gostariam de ver sendo retratada.
Não é só a personagem de Ana que é ruim. Grey não oferece nada em termos de personalidade. Aliás, ele é repugnante. Talvez não tanto porque o ator é boa pinta e por isso há uma parcela da mulherada que vai evitar entender a verdadeira mensagem do longa-metragem. As atuações da dupla sadomasoquista, inclusive, é muito abaixo da média. É difícil mesmo conseguir ter um trabalho fora do comum com falas absurdamente hilárias, como na cena em que Grey diz que não faz amor e sim outra ação. Em muitos momentos, Cinquenta Tons de Cinza se transforma numa comédia involuntária. O que não faltam são risadas. Pode rir na sessão, o bom senso lhe dá permissão.
Dakota Johnson é uma página em branco e coloca um pouco de cor em sua interpretação quando morde o lábio inferior – já citado neste texto. Ainda assim, ela é tão sem vida quanto a cor cinza. Quanto a tons, Jamie Dornan não tem nenhum em relação a sua atuação. É a mesma cara nas duas horas de duração.
Cinquenta Tons de Cinza é um dos piores filmes que já assisti na minha vida e, se tem alguma coisa boa nesse longa é a trilha sonora, mas não há como esse ponto positivo salvar a pele de uma produção inteira. O trabalho de Sam Taylor-Johnson, baseado na obra de E.L. James, é misógino, desenvolve mal a prática S&M e não possui personalidade alguma, seja em níveis cênicos ou de direção.
Fifty Shades of Grey
EUA, 2014 – 125 min
Romance
Direção:
Sam Taylor-Johnson
Roteiro:
Kelly Marcel, baseado no romance de E.L. James
Elenco:
Dakota Johnson, Jamie Dornan, Jennifer Ehle, Eloise Mumford, Marcia Gay Harden
Por Rodrigo Ramos