Que Horas Ela Volta? | Crítica

Um estudo sobre os empregados domésticos e a relação com seus patrões

Que Horas Ela Volta posterPremiado nos festivais de Sundance, Berlim e RiverRun, e elogiadíssimo por parte da imprensa internacional e também nacional, Que Horas Ela Volta? é o tipo de filme que toca na ferida e é um exemplo de como vivemos dois Brasis diferentes lado a lado.

Quando o cinema brasileiro acerta na mosca, geralmente vem carregando altas doses de realidade, nos fazendo esquecer daquelas comédias sem alma e sem graça que lotam os complexos cinematográficos pelo país. Cidade de Deus, Tropa de Elite, O Som ao Redor, Central do Brasil. Que belos acertos. Dá pra inserir Que Horas Ela Volta? aí com facilidade, pois não só retrata, como denuncia um Brasil ultrapassado, mas que tantos tratam com naturalidade.

Val, interpretada brilhantemente por Regina Casé, é uma empregada doméstica em São Paulo. Há 13 anos ela trabalha para essa família de classe média alta, servindo inclusive de babá para Fabinho (Michel Joelsas), garoto que ela viu crescer, da infância até a juventude. Nesse tempo, ela jamais regressou para sua terra natal, em Pernambuco, onde deixou sua filha Jéssica (Camila Márdila), ainda criança. Val, possivelmente, não ganha bem o suficiente para pagar uma passagem de avião e é possível concluir que a família a qual ela serve tampouco deixaria que ela ficasse fora por tanto tempo. Afinal, como alguém pode ir até a geladeira pegar um pote de sorvete sem uma empregada, não é? Basicamente todo o salário de Val ia para a filha, lá em Pernambuco, a fim de prover uma vida melhor à ela.

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Eis que Jéssica então resolve visitar a mãe com um propósito: fazer vestibular em São Paulo. O que a garota, que não vê a mãe há mais de uma década, não sabia era que sua genitora não tem sua própria casa e mora em um quartinho de empregada no lar dos patrões. A presença da filha muda completamente o status quo dentro da residência. Enquanto Val leva tudo no bom humor nas situações do cotidiano no trabalho, Jéssica insiste em não servir aos patrões da mãe. É possível até encarar a posição de Jéssica como uma convidada não muito querida, até mesmo folgada. Ainda assim, é compreensível que ela não queira se rebaixar como se fosse escória. Ela faz parte de uma geração que não aceita mais esse tipo de convenção social burra e ultrapassada.

Apesar de a patroa Bárbara (Karine Teles) dizer logo no início da exibição que Val é “como se fosse da família”, o tratamento certamente não é correspondente. Claro, quem não gostaria de ter alguém para lavar a louça, a roupa, limpar a casa, fazer o almoço? Ter um empregado doméstico não seria um problema em si caso esse tipo de trabalhador fosse tratado com o mínimo de dignidade. No caso de Val, em uma casa enorme, o quarto de visita é umas três vezes maior do que o quartinho em que ela vive. Nem sequer um ar-condicionado existe naquele cubículo para que ela possa sobreviver ao calor. Durante o jantar, Bárbara, o marido Carlos (Lourenço Mutarelli) e Fabinho terminam de comer e ficam ali, no silêncio eterno, todos em seus celulares. Não há conversa entre eles. Ficam como verdadeiros zumbis, reféns da tecnologia. E, aparentemente, incapazes de sequer tirar um prato da mesa. Imóveis. Aliás, não são capazes nem de servirem-se um copo de água ou um refrigerante que está ali mesmo na mesa. A empregada precisa fazê-lo. Parece que são incapazes. Enquanto Val e tantas outras empregadas Brasil a fora trabalham quase como de forma escrava. O casal enxerga Val não como uma pessoa que eles contrataram para prestar serviços, mas sim uma súdita, capaz de fazer absolutamente tudo o que desejarem, só porque pagam um salário, que não a possibilita nem a visitar a filha em outro estado. Eles são incapazes de ver que há um ser humano por trás do avental. Mas isso pouco importa para eles e para muita gente no país.

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Em uma viagem recente que fiz, fiquei hospedado na casa de uma senhora de mais de oito décadas. Ela é o tipo de pessoa conservadora. Ela não aprecia, por exemplo, pessoas com tatuagens. Acha aquilo horrível. Viúva, ela vive no seu apartamento em um bairro nobre, mas cujo município prefiro não revelar. Durante os dias da semana, mora ali também sua empregada. Não sei aonde exatamente é a casa dela, mas nos fins de semana ela vai pra lá. Porém, como disse, de segunda à sexta ela fica situada nesse apartamento.

A senhora que me hospedou não demorou muito para falar mal de sua contratada. “Ela adora café. Se deixar, ela toma uma garrafa inteira”, comentou, como se fosse falta de etiqueta beber café. A anfitriã me contou que assiste novela com sua empregada todas as noites, momento em que esta tem pra relaxar. No entanto, pelo o que entendi, a moça não tem permissão para sentar no sofá como eu tinha. Ao lado do sofá, havia uma cadeira, que a senhora disse que pertencia à empregada e que sentava ali para ver a telenovela. Assim como em 99% das residências que possuem uma “Val” fixa, a senhora também não permitia que a sua contratada sentasse à mesa para qualquer refeição. E o quartinho onde ela dorme, cinco vezes por semana, é tão pequeno quanto o da personagem de Regina Casé.

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Essa empregada doméstica, tão desvalorizada ainda que necessária para as classes média e alta, também tem outra característica interessante. É uma escolha acertada Muylaert criar o paralelo entre a relação de Val com Fabinho e com Jéssica. Ainda que essa situação seja explorada logo no início, é uma situação comum. Enquanto para Jéssica, Val foi uma mãe ausente, esta foi extremamente presente e essencial na criação de Fabinho, que a tem como uma segunda mãe, às vezes mais importante no dia a dia do que a sua própria, Bárbara, que lava as mãos quando se trata da criação do filho e se foca na carreira profissional.

Que Horas Ela Volta? dá até um arrepio por ser tão verossímil. Em termos narrativos, a história criada por Muylaert caminha pacatamente, mas vai montando um quadro crítico. As peças estão no lugar certo e e as interpretações estão no tom perfeito. É de fato um trabalho que só funciona em conjunto, como uma orquestra. Todos merecem atenção, mas o destaque natural vai para Regina Casé. Se para alguns, a apresentadora do programa Esquenta não agrada, no papel de Val ela simplesmente some na personagem e faz com que qualquer um esqueça do que ela faz todo domingo na Rede Globo. Se poderia partir para os clichês, certamente Casé foge deles em sua atuação, e o roteiro também é fundamental nesse sentido. As situações vividas por ela soam reais ao extremo, seja passando vergonha na frente dos patrões porque a filha está se sentindo a vontade demais, quebrando um item da casa ou dando presente para a patroa. Entre a emoção, a alegria de estar viva e os estresses, Casé dá vida a uma personagem tridimensional, de bom coração, humilde e humana acima de tudo. É uma daquelas interpretações que te deixa embasbacado, sem precisar de artifício algum além do puro talento, na cara e na coragem, e dá vontade de aplaudir de pé ao final da sessão. Sem exageros.

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Que Horas Ela Volta?
Brasil, 2015 – 112 min
Drama

Direção:
Anna Muylaert
Roteiro:
Anna Muylaert
Elenco:
Regina Casé, Camila Márdila, Karine Teles, Lourenço Mutarelli, Michel Joelsas, Helena Albergaria

5 STARS

Por Rodrigo Ramos

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