Lady Gaga abre o coração (à força) em Chromatica

Com Chromatica, a cantora estadunidense entrega um álbum dançante, mas também muito vulnerável e aberto, lírica e musicalmente.

Os fãs de Lady Gaga já estão acostumados: a cada novo ciclo de lançamento, a cantora transforma completamente a sua imagem e cria um mundo novo ao seu redor. O abraço da arte contemporânea nos museus clean e envernizados do ARTPOP, a deusa-mãe alienígena vestida de couro preto do Born This Way, a trovadora pop emocionalmente crua do Joanne

A essa altura de sua carreira, essa metamorfose e essa autocriação já são sinônimos de Lady Gaga – como foram/são sinônimos de Madonna ou de David Bowie, diga-se de passagem. Por isso é tão curioso vê-la se despir de tudo isso em Chromatica

O álbum até tentou introduzir um planeta alienígena separado por facções e cheio de simbologia no primeiro single, “Stupid Love”. Em meio a uma pandemia que impediu performances ao vivo extravagantes ou a concepção de uma turnê em torno do disco, no entanto, esse artifício todo não sobreviveu muito. O que ficou, ao invés disso, foi um álbum dançante, sim, mas também muito vulnerável, muito aberto, lírica e musicalmente.

Adaptação para o streaming

Parte dessa vulnerabilidade veio também da necessidade de compor uma obra pop que se ajustasse às exigências mercadológicas da atualidade, que ditam faixas mais curtas para capitalizar com o streaming. 

Enquanto, em discos anteriores, Gaga se alongava em viagens musicais e líricas (por vezes excitantes, não me levem a mal) através de faixas de quatro ou cinco minutos, em Chromatica ela vai direto ao ponto – e é de arrepiar o que ela e seu time de produtores e compositores são capazes de fazer quando o tempo é curto, o quanto são capazes de compactar as suas ideias em um pacote rápido, certeiro, que não perde o impacto.

A permanência da complexidade de Gaga mesmo em faixas de três minutos ou menos passa por decisões práticas de estrutura (manter a bridge na maioria das músicas, por exemplo, preferindo economizar em repetições do refrão ou quantidade de versos), mas também pela audácia de executar cada ideia absurda que surge no estúdio. 

Mesmo em um espaço menor do que o normal para Gaga, Chromatica esbanja riqueza instrumental, inserindo batucadas (em “Sour Candy”), seções de cordas e sopros (em “Enigma”), sintetizadores flautados (em “Sine from Above”) e outras maluquices musicais nos lugares mais improváveis.

Abertura emocional

A ousadia na produção tem critério, no entanto. Embora seja guiado pelo mesmo impulso criativo irrestrito que fez do Born this Way um clássico contemporâneo, o Chromatica é (por necessidade) mais focado, mais organizado, mais inteligente com suas ferramentas. De fato, ele constrói uma viagem musical muito clara, e ouvindo o disco todo é fácil perceber o quanto ele se abre aos poucos.

Se “Stupid Love” é um dance imaculado por outras influências, “Rain on Me” é muito mais levada pelo baixo do que pelo sintetizador, “Free Woman” e “Fun Tonight” inserem uma sensibilidade de arena noventista ao álbum, “911” e “Plastic Doll” se abrem para a influência do eletro, “Enigma” e “Replay” ensaiam a chegada da disco music à festa.

Liricamente, o processo se repete. Gaga pondera sua busca por realização e cura na música de forma progressiva, em suas composições mais diretas e doídas até hoje. 

Dependências químicas vem à tona em “Rain on Me” (que, segundo a própria Gaga em entrevista à Apple, pode ser entendida como uma metáfora para o alcoolismo) e “911”, enquanto os momentos mais sombrios do estresse pós-traumático são o assunto de “Fun Tonight” e “Replay”. 

Esta última, aliás, tem a estrutura mais brilhante do disco, com o seu mote repetitivo que vai deixar o “replay-re-replay-eh-eh” tocando na cabeça dos fãs por muito tempo.

Mensagem realista

Se a salvação de Gaga em “Sine From Above” parece desesperada e artificial, é porque ela é — em Chromatica, a cantora reconhece a sina da imperfeição, a imortalidade dos monstros sobre os quais ela canta desde que chegou à cena pop, e encontra alguma alegria (ou talvez seja só alívio) nesse reconhecimento. 

A chave musical do Chromatica é que nenhuma de suas “fases” se anula, o que criaria uma obra episódica. Ao invés disso, elas se somam. Por isso a celebração admitidamente boba e extravagante da última faixa, “Babylon”, é tão deliciosa – ela junta coros, pianos, cordas, sopros e tudo o mais que veio antes dela no disco, parecendo jogar as mãos para o alto e dizer: “já que o mundo é assim, vamos nos divertir um pouco”.

Aqui, Lady Gaga encara de frente, sem artifícios de encenação, o derivativo, o descartável, o sublime e o perene da música pop. Ela defende a glória e a derrocada dessa forma de arte como ninguém, armada com um talento gigante, sim – mas, especialmente, com uma audácia e um impulso criativo que não encontram paralelos no mainstream.

Por Caio Coletti

 

 

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