Juntamos todas as controvérsias envolvendo o filme que pode ser laureado no Academy Awards, em fevereiro.
Aconteceu no sábado (19) a 30ª edição do PGA Awards 2019, prêmio do Sindicato dos Produtores (Producers Guild of America). Um dos principais indicadores do Oscar, a premiação laureou Green Book: O Guia, como melhor produção cinematográfica do ano.
Para o Oscar, o PGA é um dos principais termômetros. Em 29 edições, o vencedor da premiação conquistou o Oscar de melhor filme em 20 oportunidades. Nos últimos 10 anos, os ganhadores não vieram a faturar o Academy Awards em 2016 e 2017, quando A Grande Aposta e La La Land saíram derrotados respectivamente por Spotlight e Moonlight. No ano passado, A Forma da Água acabou vitorioso em ambas as premiações.
O filme de Peter Farrelly vem se cercando de polêmicas desde novembro, porém nada que tenha abalado até o momento a onda do longa-metragem estrelado por Viggo Mortensen e Mahershala Ali. Mas vale lembrar os vários problemas que a produção vem encarando desde seu lançamento.
Em novembro, durante o painel de perguntas e respostas após a exibição do filme, no ArcLight Cinemas Hollywood, Mortensen utilizou a “N-word”, e por conta disso recebeu várias críticas. Mais tarde, o ator se desculpou, dizendo que não tem nem o direito de sequer imaginar a dor que causa nas pessoas ouvirem esta palavra em qualquer contexto, “especialmente vindo de um homem branco”.
Uma das primeiras críticas é em relação ao longa basear-se em algo chamado “The Magical Negro”. Conforme texto do Indiewire, o termo refere-se a um arquétipo originado da ignorância do roteirista branco de qualquer experiência genuína de afro-americanos. No caso, os três roteiristas são caucasianos: Nick Vallelonga, Brian Hayes Currie e Peter Farrelly. “Ele é tipicamente paciente, algumas vezes sábio, e usualmente tem algum tipo de poder mágico. Sua função principal é ajudar o protagonista branco superar alguma grande falha”, descreve Tambay Obenson, no artigo do Indiewire. Alguns criticam o filme justamente por ser uma jornada sobre como um homem branco racista se torna menos racista com a ajuda de um negro, e a narrativa é muito mais sobre Tony Lip (Mortensen) do que Don Shirley (Ali).
Don Shirley não está mais entre nós — ele faleceu em 2013 –, porém seu afilhado Edwin Shirley II, o irmão Maurice Shirley e sua esposa Patricia Shirley estão, e os familiares são unânimes ao criticarem o filme, acusando a produção de ser mentirosa em diversos aspectos, incluindo o distanciamento de Don da família e a amizade inexistente entre ele e Tony.
“Você perguntou que tipo de relacionamento ele [Don] teve com Tony? Ele despediu Tony! O que é consistente com várias demissões que ele realizou com seus choferes ao longo do tempo… Tony não abria a porta, ele não pegava nenhuma das bagagens, ele não tirava o seu chapéu [de chofer] quando Donald saía do carro, e várias vezes Donald encontrava ele sem o chapéu e o confrontava. Quando você escuta que Tony esteve com ele por 18 meses, eu garanto a você, nenhum chofer durou 18 meses com meu irmão. Qualquer um sabia do temperamento do meu irmão […] — o máximo foi um chofer aqui de Milwaukee da Urban League que durou no mínimo dois meses”, relatou Maurice em dezembro.
O sobrinho de Don, por exemplo, diz que há 30 anos, Nick Vallelonga, o filho de Tony e roteirista do filme, abordou o verdadeiro Don sobre a produção de um longa, mas o artista teria recusado. Depois da entrevista dada pelos familiares pro site Shadow and Act, Mahershala Ali telefonou para os familiares de Shirley e lhe pediu desculpas pela situação.
Enquanto essas questões não pareciam incomodar demais Hollywood, uma nova polêmica tocou em outro tópico problemático. A internet vasculhou o perfil do roteirista Nick Vallelonga no Twitter e encontrou um tweet islamofóbico de novembro de 2015 em que ele respondia uma afirmação que Donald Trump deu ao The Washington Post. O atual presidente dos EUA disse na época: “Eu vi quando o World Trade Center caiu. E eu vi em Jersey City, New Jersey, onde haviam milhares e milhares de pessoas celebrando enquanto aquela construção caía. Milhares de pessoas celebrando”. Trump foi refutado sobre esta afirmação, entretanto Nick disse na ocasião o seguinte, citando diretamente o perfil de Trump na mensagem: “100% correto. Muçulmanos em Jersey City comemorando quando as torres desabaram. Eu vi, como você, possivelmente na CBS News local”.
Após a descoberta do tweet, Vallelonga apagou não somente o tweet, como a sua conta no Twitter. Ao Indiewire, um representante respondeu por email que “a conta de Twitter foi deletada… não sei se algum comentário [a mais] é realmente necessário aqui”. Além de aparentemente ser islamofóbico — ao menos, a afirmação foi –, o mal estar é ainda maior pelo fato de Mahershala Ali ser muçulmano.
Além disso, o site The CUT divulgou uma matéria afirmando que o diretor Peter Farrelly costumava mostrar o seu pênis durante as filmagens de seus filmes. A publicação cita outras duas matérias, de 1998, em que a técnica de descontração no set era utilizada, em especial durante as gravações de Quem Quer Ficar com Mary?. Por meio de um representante, Peter disse que a afirmação é verdadeira e que ele “era um idiota”. “Eu fazia isso décadas atrás e eu achava que eu estava sendo engraçado e a verdade é que eu estou envergonhado e isso me faz encolher agora. Eu lamento profundamente”.
Mesmo com tantas coisas negativas em torno de sua imagem, elas vêm sido ignoradas pela maior fatia das premiações. Parte disso talvez seja a tentação de Hollywood em querer filmes que tratem de racismo, mas de forma menos radical — outros longas trataram questões raciais com mais competência, desde os ignorados da temporada de premiação como Ponto Cego e O Ódio Que Você Semeia, até o badalado Infiltrado no Klan. Porém, Green Book tem uma fórmula hollywoodiana consagrada, redime o homem branco racista e dá uma sensação boa quando acaba — o que o difere das outras películas citadas.
Todavia, a Academia vem buscando fazer escolhas diferentes. Claro, a tentação de escolher filmes com certa referência aos clássicos do passado é algo comum e visto até mesmo em A Forma da Água, que apesar disso é muito mais profundo do que parece na superfície. Tomando os dois últimos vencedores do PGA na década que não levaram melhor filme no Oscar, a mensagem é clara. Spotlight e Moonlight eram obras bem mais políticas e relevantes do que A Grande Aposta e La La Land. E a tendência da Academia tem sido equilibrar essas questões, especialmente por ter aberto novas vagas, com gente mais nova na indústria, na idade e também diversificada. Não parece do feitio da Academia, neste momento, agraciar um longa-metragem problemático como Green Book.
Se formos levar para o lado de barreiras a serem quebradas e posições políticas fortes, é aí que Roma, de Alfonso Cuarón, pode se fortalecer e desbancar Green Book. Além de ser um filme muito superior em diversos sentidos, Roma é um filme de um mexicano, falado todo em espanhol. Laureá-lo seria uma resposta direta aos absurdos de Donald Trump em relação à fronteira com o México e os imigrantes. Sem contar que seria uma grande mudança na premiação: este seria o primeiro longa-metragem falado em língua não-inglesa (O Artista é francês, porém é mudo) a levar a categoria principal do Oscar, e também seria o primeiro lançado por um serviço de streaming — no caso, a Netflix — a vencer melhor filme. No Globo de Ouro, a produção não podia concorrer como melhor filme devido às regras — porém, levou melhor direção e melhor filme estrangeiro. No PGA, infelizmente acabou perdendo para Green Book. Entretanto, a obra de Cuarón conquistou o troféu de melhor filme, longa estrangeiro e diretor no Critics’ Choice Awards.
Por enquanto, o único à prova de balas das polêmicas é Mahershala Ali, que vem conquistando todos os prêmios de ator coadjuvante aos quais disputou. No geral, a briga está acirrada, mas o prêmio do Sindicato dos Produtores favorece no momento Green Book. Amanhã saem os indicados ao Oscar e podemos ter um novo panorama. No dia 2 de fevereiro, acontece o DGA Awards, do Sindicato dos Diretores, no qual tanto Roma quanto Green Book disputam. Caso o filme mexicano leve a melhor, a briga volta a ficar de igual para igual. Mas se a película estadunidense vencer, é difícil haver um resultado diferente no Oscar. No fim, a escolha será apenas uma: Hollywood pode optar por uma mensagem clara e política ou uma arcaica e problemática.
A 91ª edição do Oscar acontece no dia 24 de fevereiro.