Bohemian Rhapsody | Crítica

Biografia chapa-branca é tudo o que o Queen não é: clichê, desinspirado e sem alma. 

Retratar a trajetória de uma das maiores bandas e de uma das principais vozes de todos os tempos é uma tarefa ingrata. Freddie Mercury é uma figura legendária e as músicas do Queen continuam dialogando com o público ainda hoje. Ouvir “Bohemian Rhapsody”, “We Will Rock You”, “We Are the Champions” e “I Want to Break Free” sem querer cantá-las é impossível. A voz e o estilo de Mercury são inconfundíveis. Sua história é conhecida por muitos. Portanto, não havia como esperar menos do que um filme grandioso. Porém, diferente da obra-prima que é canção, o filme intitulado Bohemian Rhapsody está longe de ser uma.

Os problemas do longa podem ser respondidos por algumas questões dos bastidores. Quando o projeto ainda engatinhava, no começo da década, Sacha Baron Cohen (Borat, A Invenção de Hugo Cabret, Who Is America?) estava contratado para interpretar Freddie. As semelhanças eram evidentes e Cohen já mostrou saber até cantar em Sweeney Todd: O Barbeiro Demoníaco da Rua Fleet. O ator queria mostrar todos os lados de Mercury, com um filme de classificação indicativa para maiores de 18 anos, com direito às maiores loucuras feitas pelo artista, a batalha contra a AIDS, absolutamente tudo, sem censura. Em 2013, no entanto, ele saiu porque os membros da banda queriam uma versão mais “família” da história de Freddie. O baterista Roger Taylor recentemente criticou Cohen por isso, e disse que o ator não levava o vocalista da banda a sério. No final do ano passado, o diretor do filme, Bryan Singer (X-Men: Dias de Um Futuro Esquecido, Os Suspeitos), foi despedido da produção pelo estúdio, por se ausentar sem nenhuma justificativa do set de filmagens; Singer, por sua vez, disse que o fez para cuidar de um parente que estava doente. Estima-se que 16 dias tenham sido gravados por Dexter Fletcher (Voando Alto). Apesar disso, os créditos foram mantidos para o primeiro diretor.

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Além disso, foram anos com mudanças de roteiristas, diretores e possíveis protagonistas. Não há como precisar o quanto foi mudado de 2010 para cá, mas é evidente que o longa se transformou em uma produção robótica e procedural. Do início ao final, tudo parece calculado e fruto de uma receita de cinebiografia. O que se encontra aqui é possível ver em tantas outras produções que já tentaram retratar com maior ou menos precisão os fatos. Há uma leve mostra de que ele é de família simples, que resolve sair desse ciclo para se tornar uma estrela — e sem tanto esforço, pelo o que retrata o filme, consegue chegar lá. Claro, há um romance central para conduzir o fio narrativo, uma pincelada nos problemas com álcool e drogas — mas nada que aumente a classificação indicativa para maiores de 14 anos. E o desfecho é de redenção. Não podem faltar as frases prontas, como a que o pai diz como mantra no início do filme, e o protagonista reproduz nos minutos finais, como se ali finalmente se reconectasse com a família. Todos os clichês estão presentes, com um momento musical aqui e ali para costurar o filme.

Não há tantos problemas em ser clichê — afinal, há filmes que utilizam isso a seu favor e possuem também outras virtudes. Entretanto, o longa-metragem parece ter medo da própria história da pessoa de quem está tentando narrar. Claro, a vida de Mercury é gigante, podendo render mais de um único filme, tranquilamente. Entretanto, a escolha aqui é fazer um grande apanhado, culminando em uma das principais apresentações da banda, em 1985, no Live Aid. Tudo bem. Há tantos detalhes que são negligenciados aqui. Pouco é falado sobre como foi crescer para Freddie, as dificuldades que passou na juventude — não foram poucas, especialmente por sua origem, basta dar uma rápida olhada no Google. A relação com os pais é tão superficial que chega a incomodar o desfecho do arco familiar em uma das últimas cenas antes da apresentação do Live Aid. A própria relação com os membros da banda é vista por cima. Tirando os momentos do estúdio, e um atrito específico com o baterista Roger Taylor, não há realmente vida de Mercury com os demais integrantes do Queen. Na concepção da película, ser família é compôr e performar um do lado do outro, já que relação interpessoal fora do estúdio e dos palcos basicamente não existia.

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A sexualidade de Freddie era uma das maiores preocupações dos fãs da banda antes do lançamento. Ao que tudo indicava, o longa iria focar na relação do cantor com Mary Austin. Herdeira da mansão e fortuna de Mercury, ela fez parte sim da vida do artista, tendo uma relação amorosa que durou seis anos, mas a amizade se manteve até o final da vida do cantor. O casal interpretado por Rami MalekLucy Boynton não ter química alguma e não convencer em cena nem é o maior problema dessa relação. O filme, desde o princípio, não vê problemas em mostrar os dois juntos na cama, de Freddie citar o quanto ama transar com ela, nem ressaltar que ela é o amor da vida dele. Se Mercury era de fato bissexual — apesar de ele dizer isso à Mary no filme, a Mary da vida real diz que ele se assumiu gay para ela –, o longa chega mesmo a mostrar que ele apreciava os dois sexos. Entretanto, seguindo o estilo “família” que o guitarrista da banda afirmou que teria, não há nenhuma cena, por exemplo, de Freddie deitado com um homem — nem seria necessário aqui de uma cena de sexo, não é isso. O longa-metragem tem vergonha de mostrar Freddie se divertindo com homens. Momentos de afeto com pessoas do sexo masculino são pouquíssimas — enquanto em um beijo recebido, Freddie empurra o homem, na outra é Mercury que parte para o encontro dos lábios de outro rapaz, mas este acaba lhe dando um fora. Ademais, a película dá a impressão de tentar criar uma correlação entre os males de sua vida (álcool, drogas, até mesmo a AIDS) com o fato de o cantor se relacionar sexualmente com outros homens — apesar de no fim ele ficar com um o qual não o quis enquanto encontrava-se em grau etílico alto. Entende-se aqui que a intenção não é mesmo investigar nada na vida do Freddie, nem mesmo tentar entender uma figura tão complexa, difícil e genial. É tudo superficial, raso. E, portanto, o resultado final esbarra-se nessa questão: se o filme não vai fundo, as emoções não são acionadas no espectador.

Sendo o Queen em questão, ao menos esperava-se algo grandioso em termos musicais. Entretanto, também peca-se nesse sentido. É importante ressaltar que qualquer coisa fica bom com músicas da banda — pegue o exemplo do trailer de Esquadrão Suicida. E, ainda assim, o filme se perde na hora de inserir as faixas do grupo britânico. Só porque as canções são ótimas, não significa que elas encaixem em qualquer momento. Abrir com “Somebody to Love” é um desperdício sem tamanho, mas a utilização de “Under Pressure” no final de uma discussão não faz o menor sentido e ainda acaba estragando uma cena que já tinha um diálogo pra lá de questionável. Quando a banda performa em cena, o impacto some com as evidentes dublagens. Malek consegue ser um ótimo imitador do jeito de Freddie, porém ele não entrega o necessário — parte é culpa do roteiro raso, outra parcela é da direção totalmente desinspirada, e a última fica na sua conta. Pegue a apresentação no Live Aid. Por mais que Malek imite todos os movimentos com precisão, sua performance não é crível. Enquanto Freddie se esforçava ao máximo no palco para cantar, com todas as veias saltando no pescoço e na testa, com direito a muito suor, Malek não chega nem a 50% da entrega. O catálogo das músicas do Queen são pura emoção, e o ator não consegue atingir esse topo. Aliás, ninguém no elenco consegue. Novamente, é tudo superficial.

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É extremamente decepcionante quando um filme sobre Freddie Mercury e o Queen falha no quesito musical. Nesses termos, há exemplos recentes como Nasce Uma Estrela e La La Land (sim, infelizmente estou usando o filme de Damien Chazele como exemplo positivo) conseguem um trabalho muito mais naturalista em seus números musicais. Nasce Uma Estrela, inclusive, é superior em desenvolvimento de personagens, atuações e direção (tanto de filme quanto musical). Enquanto você consegue sentir emoções durante os números musicais de Lady Gaga e Bradley Cooper, porque eles estão ali se entregando de verdade, o mesmo não se pode dizer do elenco que interpreta o Queen em cena. É imitação, não atuação.

Em termos de cinebiografias, é possível fazer um trabalho competente, complexo e tridimensional mesmo quando se trata de retratos do meio musical. Não Estou Lá (sobre Bob Dylan), Johnny & June (sobre Johnny Cash) e Amadeus (sobre Mozart) são exemplos bem sucedidos baseados em músicos. Até o recente nacional Legalize Já: Amizade Nunca Morre (sobre o Planet Hemp) é mais interessante. Talvez o principal fator que contribua para que Bohemian Rhapsody seja um fracasso cinematográfico é o fato de ser totalmente chapa-branca. É possível imaginar, por exemplo, A Rede Social, acontecendo somente com a benção de Mark Zuckemberg, de acordo com o que ele acredita ser a verdade? Há muito mais na história de Freddie Mercury — para o bem e para o mal. Porém, ao tentar normatizá-lo tanto, fica de fora uma resposta essencial, sendo o cantor a figura que conhecemos: o que realmente torna Freddie Mercury tão especial? Não se sabe. Ao menos, não através dos 134 minutos aqui. Ele é só mais um aos olhos de Bryan Singer e Bohemian Rhapsody é só mais um filme em cartaz, sem alma, sendo o oposto das músicas do Queen.

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Extra Large Movie Poster Image for Bohemian Rhapsody (#2 of 10)Bohemian Rhapsody
EUA, 2018 — 134 minutos
Drama/Musical

Direção:
Bryan Singer
Roteiro:
Anthony McCarten, Peter Morgan
Elenco:
Rami Malek, Lucy Boynton, Gwilym Lee, Ben Hardy, Joe Mazzello, Aidan Gillen, Allen Leech, Tom Hollander, Mike Myers, Aaron McCusker

Por Rodrigo Ramos

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