Em meio a briga entre amigos e posições ideológicas, filme mantém a qualidade e as características do Universo Cinematográfico da Marvel.
Capitão América: Guerra Civil chega aos cinemas com a proposta de ser tudo o que Vingadores: Era de Ultron prometia e não cumpriu. Com clima levemente mais denso em relação aos longas anteriores do Universo Cinematográfico da Marvel, o filme ainda se assemelha aos seus sucessores ao mesclar cenas de ação com uma narrativa redondinha e boas piadas, sem nunca deixar a situação tensa o suficiente para sequer lembrar uma película baseada nos quadrinhos da DC.
Baseado nos quadrinhos lançados entre 2006 e 2007, escrita por Mark Millar (Kick-Ass, Kingsman) e desenhada por Steve McNiven (Wolverine, O Espetacular Homem-Aranha), Guerra Civil tem uma pegada agressiva nas HQs e também traz todos os heróis do universo das páginas da Marvel para o confronto. Portanto, era difícil imaginar que a Marvel nos cinemas fosse ter êxito em trazer essa ideia, que envolve até mortes de super-heróis, para a telona partindo do tom adotado em todo o seu universo cinematográfico, desde Homem de Ferro, em 2008. Ainda assim, a dupla de roteiristas Christopher Markus e Stephen McFeely (Capitão América: O Soldado Invernal, Thor: O Mundo Sombrio) e a dupla de diretores Anthony e Joe Russo (Capitão América: O Soldado Invernal) conseguem extrair a essência de uma treta entre os principais heróis da editora e divide os personagens em dois grupos, pró e contra o governo.
Após uma sucessão de eventos catastróficos que, visando a salva-guarda da humanidade, acabou causando a morte de diversas pessoas (as famigeradas casualidades), a Organização das Nações Unidas (ONU) resolve criar um documento do qual exige que os heróis sejam devidamente registrados e operem somente sob supervisão e autoridade da ONU. Ou seja, nenhum super-herói — ou vigilante, depende do ponto de vista — poderá sequer salvar um gato preso à uma árvore alta demais sem que o governo dê o aval. É aí que as divergências ocorrem. Tony Stark (Robert Downey Jr.) sofre de dor na consciência — em Era de Ultron já se via o temor dele diante da responsabilidade que tem em mãos. Enquanto isso, Steve Rogers (Chris Evans) encontra-se incrédulo quando o assunto é governo, haja visto que a S.H.I.E.L.D. foi facilmente corrompida pela H.I.D.R.A. Nada impede que o herói sinta remorso e parte da responsabilidade quanto às mortes que os poderes dele e de seus amigos acabam causando, mas ele não enxerga como os heróis poderiam agir servindo apenas para o propósito de políticos.
Em meio a discussão política, surge outro problema em paralelo, mas que também faz parte do cerne da narrativa. Bucky Barnes (Sebastian Stan) está de volta e, em suma, todo mundo quer o pescoço do Soldado Invernal, exceto por Rogers, que ainda crê na reabilitação do velho amigo.
É bom lembrar que este filme é sobre o Capitão América, não servindo como um novo longa dos Vingadores. Apesar de os heróis estarem presentes em peso por aqui, a trama se desenrola através da perspectiva de Rogers na maior parte do tempo, em especial no relacionamento dele com Bucky e Tony. É um filme mais sobre amizade e camaradagem do que política. Ainda assim, no que se trata da guerra civil em questão no título, o roteiro consegue expôr os dois lados sem querer induzir o espectador a escolher um deles. Os argumentos de ambos são válidos, gerando uma discussão política interessante, além da briga de egos já iniciada nos dois filmes dos Vingadores.
A grande discussão do filme, de regulamentação para os super-heróis, acaba esbarrando na temática de Batman vs Superman: A Origem da Justiça. Aliás, alguns elementos de Capitão América: Guerra Civil convergem com o longa da DC Comics e Warner Bros. A película dirigida por Zack Snyder tinha como ponto de partida a discussão sobre se um super-herói, a exemplo de um alienígena como o Superman, deveria estar à disposição da Justiça ou não, afinal como saber se este vigilante todo poderoso um dia não poderá se voltar contra a população? Se no filme da DC, os heróis caem na porrada dispostos a matar um ao outro se for necessário, na Marvel a briga não chega a ser tão séria. Boa parte do tempo a questão é mais ideológica e menos braçal, até que eventualmente o confronto se torna iminente. Mas nunca com o intuito de um tirar a vida do outro. Pelo contrário. Parece mais uma cortina de fumaça. Quase ninguém está realmente disposto a lutar pela ideologia. Na ótima sequência do aeroporto, vários personagens fazem menção de como aquela luta é café com leite e uns sequer sabem o que estão fazendo ali. Talvez uns três personagens estejam levando a situação realmente a sério, enquanto outro está apenas em busca de vingança, independente da discussão política.
Se a narrativa tem a proposta de tecer temas mais sérios, a Marvel fica longe do sombrio e realista. Mesmo com a briga entre os heróis, as piadas costumeiras do universo do estúdio continuam presentes. Seja com Visão (Paul Bettany), Falcão (Anthony Mackie), Bucky, Steve e principalmente com Clint Barton/Gavião Arqueiro (Jeremy Reener), Scott Lang/Homem-Formiga (Paul Rudd) e o novato Peter Parker/Homem-Aranha (Tom Holland), as piadas fluem naturalmente. É ousado dizer, porém não deixa de ser verdade, que Homem-Formiga quase rouba a cena, só perdendo mesmo para o novo garoto-aranha. Com um jeito moleque e nerd, o Aranha de Tom Holland é tudo o que o fã gostaria de ver do personagem. Ainda é cedo para avaliar se este será a melhor versão do herói que já vimos no cinema — pensem bem antes de desmerecer a versão de Sam Raimi em Homem-Aranha e Homem-Aranha 2 — porém dá para se ter uma boa noção do que a Marvel almeja para ele. Tudo indica que este beberá mais das fontes dos quadrinhos e que será mais introvertido, ingênuo, inteligente, atencioso e divertido, diferente da versão pegador, atlético, skatista e insensível vivida por Andrew Garfield nesta década. Vale ressaltar que o roteiro é competente em mais uma questão: a de resumir o personagem e sua origem em poucas linhas, dispensando toda a apresentação formal em mais um longa.
O único personagem com mais gravidade no filme é T’Challa/Pantera Negra (Chadwick Boseman). Qualquer personagem pode ser alvo de tiradas ou piadas na Marvel, porém o herói de Wakanda é tratado com respeito o tempo todo. O próprio personagem se leva a sério demais. Não que não tenha sido uma apresentação digna, mas certamente destoa de todo o resto do próprio universo despretensioso criado pela Marvel.
O que não destoa do UCM neste filme são os vilões ruins. Há dois marcantes antagonistas dos quadrinhos presentes na película, todavia ambos decepcionam. Ossos Cruzados (Frank Grillo) serve apenas de distração nos minutos iniciais da trama. Por sua vez, Zemo (Daniel Brühl) não é o Barão Zemo das HQs. Pelo contrário. Sua personalidade e sua origem são completamente diferentes do personagem original. Aliás, trata-se de uma figura qualquer, que só ganha o nome de Zemo para ser um fan service, só que o tiro passa longe do alvo. Sua motivação pode até ser considerada rasa. O que é indiscutível é que seu desenvolvimento como personagem tem pouco impacto, sendo extremamente apático do início ao fim. Ainda assim, a trama só se desenvolve por sua causa. Pena que é por um vilão tão fraco. Nesse sentido, lembra também um pouco Batman vs Superman. Mesmo que os personagens não percebam e não fique exatamente explícito na história, são os vilões (Lex Luthor em BvS e Zemo em CA: GC) que causam os acontecimentos que direcionam os heróis a tomarem suas atitudes. Mas aí fica a encargo do espectador decidir qual antagonista merece mais elogios pelo plano bem executado.
Há ainda outras duas semelhanças com BvS. Uma delas se encontra no gatilho psicológico de um personagem quando o assunto é a mãe (ou o pai). Mas aí é melhor não entrar em detalhes. A outra é a polêmica de que heróis não matam. Quando BvS foi lançado, várias criticas surgiram na internet, pois muitos argumentavam que “o Batman não mata” e, no filme de Snyder, ele o faz, mesmo que indiretamente. Da mesma forma, Capitão América, Homem de Ferro e cia. também acabam matando vários cidadãos, tanto inocentes quanto os caras maus. Um vídeo criado pelo canal Mr. Sunday Movies prova que o rapaz mais bonzinho de todos, Steve Rogers, já matou inúmeras vítimas, sejam elas pessoas, robôs e alienígenas, nos três filmes que antecedem Guerra Civil — os números agora devem ser maiores. Tais detalhes não servem como desmérito para o filme da Marvel e todo seu universo, e justamente por isso não deveriam ser tidos como erros ou defeitos do filme da DC.
Apesar das semelhanças entre BvS e CA: GC, o que difere um do outro é que todo mundo já se identifica com os personagens da Marvel, pois o público os acompanha desde 2008, há um desenvolvimento feito há anos que pavimentou este caminho. BvS chegou com a intenção de tocar os espectadores com uma trama que, talvez, necessitasse de uma preparação, uma fundamentação prévia. Até por isso o longa da Warner parece um pouco corrido, com abreviações de plots e que certamente poderiam render ainda mais.
Em duas horas e meia de filme, Capitão América: Guerra Civil nunca parece cansativo, mas certamente é bastante ocupado com vários plots principais em jogo, além de subplots para desenvolvimento dos personagens secundários. É incrível como foi possível conciliar tudo isso em uma trama redondinha, com humor e cenas de ação competentes — mérito dos irmãos Russo, que orquestram com maestria, em especial, os combates envolvendo o corpo a corpo. É uma obra que tem vida própria e não parece repetição do que já veio antes (o mesmo não se pode dizer de Vingadores: Era de Ultron), trazendo ao UCM temas mais sérios, porém sem perder o bom humor em boa parte da projeção. Como é de costume, a Marvel dá um jeito de terminar o arco de uma película de maneira positiva, apesar das brigas ao longo da narrativa. Não tem jeito. Os dias de sério e sombrio da DC jamais chegarão perto da Marvel. E Guerra Civil é ainda o que chega mais próximo. Porém, há apenas um flerte e não a consumação de fato.
Captain America: Civil War
EUA, 2016 – 146 min
Ação
Direção:
Anthony Russo, Joe Russo
Roteiro:
Christopher Markus, Stephen McFeely
Elenco:
Chris Evans, Robert Downey Jr. Scarlett Johansson, Sebastian Stan, Anthony Mackie, Don Cheadle, Jeremy Renner, Chadwick Boseman, Paul Bettany, Elizabeth Olsen, Paul Rudd, Emily VanCamp, om Holland, Frank Grillo, William Hurt, Daniel Brühl, Marisa Tomei, Martin Freeman