Mesmo derrotado na categoria de melhor álbum, o rapper faz história no Grammy com performance impactante e ressalta a importância de falarmos abertamente sobre o racismo, em especial através da arte
K Lamar soube a hora certa para lançar seu terceiro disco de estúdio. To Pimp a Butterfly é uma narrativa sobre a vida do rapper, porém não serve apenas como diário pessoal. Do início ao fim dos 88 minutos de duração, o LP é um atestado de insatisfação, de luta interior e exterior, um relato do racismo, do preconceito e da violência com os negros. Apesar de o calendário marcar 2016, o embate racial continua em alta. Por mais que em países como o Brasil ainda exista gente que diga que preconceito não existe, na prática ele continua gritante, a exemplo dos vários casos de abuso policial e até de mortes de negros inocentes pelas mãos dos oficiais nos EUA – não que faltem exemplos do tipo por aqui também. Lamar fala sobre a fama e a exploração que vem com ela, e as formas como tentou escapar das amarras do dinheiro, tentando balancear a sua vida pessoal com o deslumbre causado pela exposição. Nem sempre teve sucesso, como ele descreve na emocionante “u”, sobre a ausência dele enquanto a irmã engravidava e um amigo morrera. “Abusando o meu poder cheio de ressentimento, ressentimento que se transformou em uma depressão profunda, me encontrei gritando em um quarto de hotel” é uma frase recorrente em várias faixas ao longo do álbum.
Enquanto luta com o seu interior e recusa a ser alcovitado pelo dinheiro e a fama, Lamar parte em busca de Deus e tenta fugir de Lucy (apelido carinhoso para Lúcifer). Em paralelo, o rapper preocupa-se em estabelecer a gravidade da questão da racial, inclusive declarando guerra àqueles que não são negros na explícita e fantástica “The Blacker the Berry”. “Você me odeia, não é? Você odeia o meu povo, seu plano é exterminar minha cultura. Você é mau pra caralho, eu quero que você saiba que eu sou um macaco com orgulho”, dispara Lamar.
To Pimp a Butterfly é um dos álbuns definitivos do gênero, trazendo à tona assuntos difíceis de serem engolidos pela grande massa, espinhosos. Diferente do trabalho anterior, este não faz a mínima questão de agradar o público em geral. Com influências de funk e jazz, e uma mãozinha de Flying Lotus na produção, Lamar transforma-se no maior representante do gênero, com um disco denso e urgente. Cru, poético e realista, o disco não é o melhor do ano, mas sim de toda a década.
Grammy 2016
Apesar de ter sido o grande vencedor da 58ª edição do Grammy Awards, maior premiação da indústria fonográfica norte-americana, os cinco troféus de Lamar vieram laurear, parcialmente, um disco brilhante e que reflete a cultura negra estadunidense. O problema foi vê-lo sendo derrotado por Taylor Swift. Com 26 anos, a cantora ex-country e atualmente pop já conquistou dois prêmios de disco do ano na premiação. Com canções que falam de tretas com Katy Perry, de partir corações e ter o coração partido, além de pura diversão, 1989 é o clássico disco pop de sucesso instantâneo, com uma porrada de produtores por trás (incluindo Max Martin, o rei dos #1 hits da Billboard) e que é ótimo no sentido de entretenimento, o que não é desmérito. Porém, a grande marca do álbum é colocar vários singles no topo das paradas e vender mais de 6 milhões de cópias nos EUA. Não é pouca coisa, óbvio. Chega a ser impressionante. Porém, em termos de relevância e herança cultural, o que 1989 deixa para nós? Nesse sentido, álbuns de Britney Spears (mesmo que esta não consiga cantar sem playback) são tão relevantes quanto o mais recente de Swift, apesar de menos premiado. Um sucesso em vendas e hits instantâneos.
Sob a mesma ótica, no que 1989 é melhor do que Teenage Dream, de Perry, também indicado ao Grammy de álbum do ano? Nada. O álbum de Swift é um sucesso de vendas. Ele não precisava e tampouco merecia o maior prêmio da indústria. Ironicamente, um dos cinco troféus ganhos por Lamar foi na colaboração com a cantora, por conta do clipe de “Bad Blood”, eleito o videoclipe do ano.
Mesmo não tendo vencido o troféu de álbum do ano, levando pra casa os prêmios dedicados ao rap e ao hip-hop, Lamar foi o vencedor moral da premiação. Honrando os temas tratados em To Pimp a Butterfly, ele foi o responsável pela melhor e mais impactante apresentação do Grammy. Ele cantou duas faixas do álbum, “The Blacker the Berry” e “Alright”, além de uma faixa inédita. Na performance, ele iniciou criticando a superpopulação carcerária nos Estados Unidos, em especial a grande fatia dessa população sendo formada por negros, e ainda fez menção ao clipe alternativo de “They Don’t Care About Us”, de Michael Jackson, em seu vestuário. O vídeo de MJ, por sinal, já fazia a mesma crítica em 1995 e o problema permanece.
Depois, o rapper performou em meio a uma tribo indígena. Para finalizar, ele cantou em frente ao telão, que exibia um mapa que trazia escrito “Compton”.
A apresentação representa todas as qualidades presentes no álbum e evidencia a relevância de esses temas serem abordados em pleno 2016. No entanto, em uma premiação onde os brancos costumeiramente são mais reconhecidos (lembram de 2014, quando Macklemore & Ryan Lewis conquistaram três dos quatro troféus das categorias de rap/hip-hop, incluindo melhor álbum de rap, derrubando o próprio Lamar, Jay-Z, Drake e Kanye West?), era de se esperar que o álbum que mais tinha a dizer, exaltava a cultura negra tanto nas letras quanto nas inspirações musicais, criticava a sociedade e todo o racismo embutido nas pessoas e nas instituições, perderia para a queridinha do pop, branca e campeã de vendas.
O que fica evidente é que a diversidade continua sendo um grande problema e as pessoas têm relutância em aceitar isso como um fato. Favorito a vencer o prêmio de álbum do ano, especialmente por várias listas e críticos que consideram To Pimp a Butterfly um álbum nada menos do que extraordinário, a apresentação de Lamar não desceu redondo na goela de muitos estadunidenses, da mesma forma que os brancos, especialmente políticos extremistas e canais de TV como a Fox News, não receberam bem o fato de Beyoncé finalmente abraçar a sua cor (que é negra, por sinal) e criticar a polícia, evidenciar a cultura da sua raça e também homenagear MJ em sua participação no show do intervalo do Super Bowl 50, o que gerou até uma esquete pontual do Saturday Night Live sobre o fato.
Apesar das críticas de extremistas e ausência do devido reconhecimento da indústria, o que importa é que as palavras de Lamar – e até de Beyoncé, quem diria – estão sendo ouvidas e isso importa. Se antes as vozes revolucionárias do cotidiano dos negros eram ignoradas ou não ecoavam, o cenário está sendo jogado na cara dos racistas estadunidenses e de todo o planeta. Esse tipo de influência que Lamar conquistou com seu último trabalho não tem preço. Por isso To Pimp a Butterfly é um disco que será lembrado pela relevância social e cultural, e também como um dos melhores álbuns dos primeiros anos deste século.