Não vejo o que ouço – Parte 2

Muita informação

Os números da pesquisa do Datafolha não apontam um aumento no público de filmes dublados, mas esse público se estabilizou. O que se percebe é que há oferta maior de cópias com áudio em português. Segundo o instituto Rentrak, especializado em pesquisas de mercado sobre cinema, em 2010 entraram em cartaz 44 filmes na versão dublada. Já em 2012, o número quase dobrou. Foram 81 películas desse tipo, sendo “Os Vingadores” e “A Saga Crepúsculo: Amanhecer – Parte 2” dois dos mais vistos.

A vinda dos filmes 3D auxiliou para que houvesse mais películas dubladas em cartaz. Antes de James Cameron revolucionar o cinema com “Avatar”, não havia ainda uma tecnologia apropriada para incluir legendas em uma obra tridimensional. Ainda hoje, a versão dublada é a que predomina para este tipo de exibição. No dia 17 de maio, por exemplo, o GNC Cinemas de Balneário Camboriú tinha “Homem de Ferro 3” e “Reino Escondido” em cartaz nas salas 3D. Juntas, elas englobam oito sessões diárias, sendo que apenas uma delas, de “Homem de Ferro 3”, era exibida na versão legendada. No dia 21 de agosto de 2012, em reportagem do site especializado Cinema em Cena, Gilberto e Marcos Araújo, da rede de cinemas Cinematográfica Araújo, afirmaram que “o 3D já traz muita informação visual” e que a legenda “é uma informação a mais, atrapalha”. O professor de produção de vídeo e jogos digitais, Michael Bahr, explica que os donos de cinema, muito espertos, já perceberam que as pessoas preferem visualizar e ter a experiência do 3D por completo, sem a legenda para atrapalhar a imagem em movimento.

Com ou sem 3D, a afirmação de que a legenda atrapalha a concentração do espectador é antiga. Mas, até que ponto ela é fundamentada? Uma reportagem da Revista Época, publicada no dia 14 de junho de 2012 em sua versão online, leva a crer que ir ao cinema e ter que ler é uma tarefa árdua. O texto, escrito por Tonia Machado e Danilo Venticin, afirma que “um filme como ‘Os Vingadores’, que tem muita violência e pouca conversa, contém 50 mil caracteres de legenda, equivalentes a 30 páginas de livro. Em duas horas, é muita leitura”. O professor Rafael Bona discorda e acha que esta é “uma informação totalmente sem fundamento”. Posição compartilhada pelo crítico de cinema Roberto Sadovski, para quem essa quantidade de legendas não é muita leitura e “a legendagem é até benéfica para promover mais leitura já que o brasileiro, em geral, não costuma ler bastante”.

Os Vingadores (Paramount/Marvel)
Os Vingadores (Paramount/Marvel)

Michael pensa diferente. Para ele, quem não tem o costume da leitura, qualquer linha é muito para ler. “Se formos entender que este público que não gosta de legenda porque não gosta de ler, e quase que consequentemente, tem muitas dificuldades para escrever, sim, ele é prejudicado, pois não entende o filme por completo”. O professor destaca outra possibilidade para este público. É possível que os não-praticantes de longas-metragens legendados não consigam acompanhar a legenda, por ser “muito rápida” e desistem de assistir, ou simplesmente não entendem a conexão entre as palavras. “O filme, a obra audiovisual, contem textos, que depois é expresso por falas, vozes. Se a voz que está sendo emitida, não faz parte da minha língua materna, como poderei entender? A dublagem acaba sendo a solução para estas pessoas que não ficam à vontade com as legendas”.

A estudante de jornalismo, Talissa Peixer, de 17 anos, passou boa parte de sua vida assistindo a filmes dublados. Mas, há cerca de alguns meses, ela tem se acostumado com a outra opção. Ela confessa que as legendas lhe atrapalham um pouco na hora de prestar atenção por completo à película e ainda está se adaptando. “Nesse caso, o dublado é realmente melhor para saber exatamente do que se trata a trama. Presto mais atenção na legenda do que no filme”. Contudo, sua preferência tem se tornado o legendado devido à disparidade entre o som original e o dublado. Os benefícios da troca, para Talissa, valem a pena.

O áudio e o visual

Sábado à tarde, estranhamente calmo no principal shopping de Balneário Camboriú. Não há filas para comprar ingresso na bilheteria do cinema. A sessão de “Oblivion”, filme estrelado por Tom Cruise, acaba de começar e o cheiro da pipoca que se dissemina no ar anuncia isso. Quem comprou, já entrou na sala. Sobram apenas os atrasados. De fronte à porta de saída da sala 1 encontram-se duas mulheres. É uma dupla em contraste, apesar de algumas semelhanças na vestimenta. As duas vestem calça jeans e blusa preta. À primeira vista, o que as difere são suas medidas. Luciele, 37 anos, é mais cheiinha, enquanto Michela, 35, se assemelha à forma física de uma Olívia Palito.

Oblivion (Paramount)
Oblivion (Paramount)

As amigas, ambas vendedoras, estão atrasadas para entrar na sessão. O motivo é fácil de explicar: elas estão à espera de um amigo. Tal amigo, por sinal, lhes obrigou a assistir a sessão dublada. Enquanto seus cabelos cacheados, tingidos com uma coloração que se assemelha à tonalidade de um vinho tinto, caem sobre seu ombro esquerdo, Luciele conta que o rapaz só viria ao cinema se fosse para assistir à sessão. Mas, o que preferem as duas? “Só em casa eu encaro dublado. No cinema, o bom é legendado”, conta Luciele, que desta vez abriu uma exceção. A amiga, de cabelos presos a um prendedor vermelho, argumenta sua preferência. “Não é que não goste do dublado. Assisto, mas prefiro o legendado porque o som é diferente. Têm alguns que parecem muito falsos. Não dá tanta emoção”. Mas, ela esclarece que não deixaria de ver um filme no cinema só pelo fato de ser dublado.

É inegável que o cinema é uma arte audiovisual em que as imagens e sons compõem a narrativa, assim como outros elementos. Logo, não somente as imagens como o áudio constituem a obra como um todo. O professor de cinema da Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul), Mauro Ramos, define a função da legenda como “um recurso utilizado para que o público, do país exibidor, entenda os diálogos e letreiros de outras línguas”. Ele acredita que a decisão entre optar por assistir um filme legendado ou dublado reside em dois fatores: o quão íntimo o espectador é da língua estrangeira e por um preciosismo pelo áudio original da obra.

Tal preciosismo poderia ser enquadrado como uma conotação negativa ou seria apenas um apreço pela qualidade da obra original? A dublagem, afinal de contas, não interfere, por exemplo, no clima, no sentido, nas atuações e nos efeitos sonoros? O jornalista e crítico de cinema do site UOL, Roberto Sadovski, afirma que claramente ela interfere no trabalho original, pois não existe a inflexão vocal original dos atores do filme. O professor de produção de vídeo, Michael Bahr, afirma que os dubladores levam, em média três dias para dublar um filme. É difícil acreditar que seja possível, em apenas 72 horas, fazer um trabalho que um ator do porte de um Daniel Day-Lewis precisa de um ano de estudo e pesquisa para realizar, como aconteceu em “Lincoln”, longa-metragem que lhe rendeu seu terceiro Oscar de melhor ator. Em “Sangue Negro”, o trabalho foi ainda mais intenso. Day-Lewis levou quatro anos para a preparação de seu personagem.

Lincoln (Fox/Dreamworks)
Lincoln (Fox/Dreamworks)

Sadovski completa dizendo que o áudio também é prejudicado com efeitos e nuances, já que a dublagem exige que o som seja remixado. Se este trabalho não fosse tão importante quanto um bom cenário, efeitos especiais e maquiagem, não haveria necessidade de ter prêmios especiais só para edição e mixagem de som, como acontece no Oscar. O professor de audiovisual Rafael Bona concorda com a ideia de que a dublagem interfere, sim, na obra audiovisual. “Basta olhar o seriado americano ‘Friends’. Todo o sentido muda com a dublagem”. Contudo, ele pondera. “Mas, novamente entramos na questão cultural. Na Alemanha, por exemplo, quase ninguém vê filmes legendados. Todos são dublados em alemão. O dublador envelhece junto com o personagem do cinema”. Isto não é costumeiro aqui no Brasil, salvo algumas exceções, como é o caso de Mário Jorge Andrade, ator e dublador que tem um contrato exclusivo para ser a única voz de Eddie Murphy e John Travolta.

Segundo Mauro Ramos, a dublagem sempre procura respeitar as informações do material original, mas em alguns casos isso acaba não acontecendo. “Uma interpretação mal feita pode destruir o sentido de uma sequência inteira”. Não só na voz dos personagens, mas os efeitos sonoros também ficam comprometidos. “A diferença é perceptível. Podemos identificar que o som e os efeitos sonoros do material original abaixam sensivelmente o volume para dar espaço aos diálogos dublados”.

Confira também:
Não vejo o que ouço – Parte 1
Não vejo o que ouço – Parte 3
Não vejo o que ouço – Parte 4
Não vejo o que ouço — Parte 5

Por Rodrigo Ramos

2 comentários sobre “Não vejo o que ouço – Parte 2

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